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quinta-feira, agosto 30, 2007

Medéia


Medéia era uma menina estranha.

Tinha um nariz esquisito, e olhos que não lhe caíam bem.

Mal sabia se ajeitar, coitada!

[...]

Vivia sob uma redoma hermética, que a protegia da hostilidade do mundo. Tudo lhe era percebido com estranheza desde tenra idade. Sempre acreditou que esse estranhamento passaria com os anos. Mas seu caleidoscópio sensorial continuou meio esquizofrênico.

Medéia gostava de mergulhar em si mesma de vez em quando. Não que isso fosse incomum, mas chegava por vezes a experimentar verdadeiros estados de fluxo introspectivos.

A aleatoriedade da vida lhe despertava incômodo e fascínio. Mas não despendia muito tempo com arroubos filosófico-ontológicos. Apenas se saber resultado de gametas vitoriosos lhe bastava.

Não tinha paciência, pobre Medéia.

Na verdade, ela nem se preocupava muito com fluxo, sentido e direção. Perambulava, desviava se necessário fosse, dobrava esquinas se a chamassem (ou se não se sentisse inconveniente), driblava as divisórias da calçada, parava ao olhar uma capa de revista na banca, ou ao ouvir erroneamente seu nome lhe sussurrar aos ouvidos.

Mas nunca soube o que queria, pobrezinha!

Medéia costumava falar pouco. No entanto, se entregava à tagarelice quando sentia alguns formigamentos na alma. Atropelava-se nas palavras, e elas a engasgavam a ponto de não haver coesão suficiente e seu discurso beirar o aramaico. Começava frases sem saber realmente onde queria chegar, ou que palavra sentenciara primeiramente.

As conversas ao redor lhe pareciam discos arranhados. Nunca conseguia se encontrar, nem localizar em seu intrínseco motivação para se engajar num papinho interessante. Às vezes, forjava resquícios de interesse, mas sua fugacidade mental não lhe permitia ouvir sequer as horas questionadas em segundos anteriores.

A vida não lhe despertava curiosidade.

Pobre Medéia.

A menina não tinha tempo nem pra se enfurecer com as coisas. Aliás, lhe faltava um pouco de discernimento acerca das concepções socialmente arraigadas dos absurdos.

Inventava ela mesma seus próprios absurdos.

Em sua parca existência, amargou alguns reveses amorosos (e se envolveu com uns tipinhos sobremaneira excêntricos). Ainda assim, podia ser flagrada em meio a devaneios e pieguices esdrúxulas, e chegar à iminência das lágrimas com um desfecho insosso de folhetim novelesco.

Medéia nunca se sentira plenamente. E essa sensação de incompletude lhe era desconcertante.

Pobrezinha.

A menina era uma sucessão de estados de espírito transitórios. Às vezes sentia como não lhe coubesse a alma em tão ínfima estatura. Tudo lhe parecia transcender e inundar o seu marasmo auto-biográfico.

Era de fato um amontoado difuso de vícios, manias e exercícios ritualísticos inúteis. Um emaranhado de ímpetos hedonistas. Um sem-número de corruptelas inadmissíveis ao travesseiro. Um turbilhão psico-afetivo, revestido de culposa ingenuidade, por assim dizer.

Medéia era. Ou, quem sabe, nem quisesse ser.

.

.

.

Não sabia.

[...]

Ou talvez não soubesse dizer.


sábado, agosto 25, 2007

Tarde vazia


"
Pela janela
Vejo fumaça
Vejo pessoas...

Na rua os carros
No céu o sol e a chuva
O telefone tocou
Na mente fantasia...

Você me ligou
Naquela tarde vazia
E me valeu o dia

(...)

"

(
Scandurra e Gaspa)

sexta-feira, agosto 17, 2007

Outrora


Tem sido prazeroso ver o ontem virar outrora.

A visão retrospectiva dos fatos os torna banais a ponto de questionarmos seu significado pretérito.

É como se "de cima da pedra" as coisas perdessem o sentido e as repercussões.

O ontem só faz sentido ontem.

E o hoje só se faz idôneo mediante o agora (aquele, efêmero).

As lágrimas, os risos, os sabores.

Os desafios. As vitórias. Os cheiros. As decepções.

Metas. Amigos. Amores.

[...]

Às vezes, o outrora vira saudade.

E saudade se sente do que não se fez outrora.

[...]

Outrora é memória.

Outrora é pretérito.

Outrora é luz.

Outrora é treva.


[...]

O outrora é âmago inóspito.

Outrora é vida.

Vida, por vezes inóspita,

E, de repente, vira outrora.

A fé solúvel


É, me esqueci da luz da cozinha acesa
de fechar a geladeira
De limpar os pés,
Me esqueci, Jesus!

De anotar os recados
Todas janelas abertas,
onde eu guardei a fé... em nós

Meu café em pó solúvel
Minha fé deu nó
Minha fé em pó solúvel

É... meu computador
Apagou minha memória
Meus textos da madrugada
Tudo o que eu já salvei

E o tanto que eu vou salvar
Das conversas sem pressa
Das mais bonitas mentiras

Hoje eu não vivo só... em paz
Hoje eu vivo em paz sozinho
Muitos passarão
Outros tantos passarinho

Que o teu afeto me afetou é fato
Agora faça-me um favor

Um favor... por favor

A razão é como uma equação
De matemática... tira a prática
De sermos... um pouco mais de nós!

Que o teu afeto me afetou é fato
Agora faça-me um favor

Um favor... por favor


(O Teatro Mágico)

sexta-feira, agosto 10, 2007

Nostalgia


E eis que tu me surges.

Num fim de noite que tinha tudo para ser varrido dos meus confins hipocampais, sem estrondos ou resquícios semânticos de qualquer natureza.

E tu me surges.

Com despretensão ímpar, olhar penetrante, sorriso cativante, e semblante que transluzia uma avidez por "sabe-se-lá-o-quê".

E tu me surges.

Vestindo trajes de gala, aproximando-se em câmera lenta. A um close nos olhares patéticos, os créditos iniciam uma subida triunfal (estaria eu em Hollywood?)..

E tu me surges.

Faz tempo, não?

Bastante tempo.

Nunca me senti tão Jones na minha vida. Sim, um tanto quanto loser. Um tanto quanto ambivalente, um tanto quanto inerte. Totalmente inerte.

E tu, em teu melhor estilo Cleaver.

Sagaz. Larápio.

Desenvolto com as palavras, bem-humorado. Astuto ao relatar nossos registros mnemônicos mais significativos.

É, tu me surges.

Se eu fosse Cinderela, diria que o encanto fora quebrado a meia-noite e eu partira numa carruagem dourada (displicentemente deixando cair um de meus sapatinhos de cristal) , em seguida dormindo como um anjo, e acordando pensando em você.

Mas, como não acredito em contos-de-fada, nem em encantos, maçãs venenosas e varinhas de condão, diria apenas que...

Não, eu realmente não saberia o que dizer...


Er...


Foi muito bom esbarrar com você, Cleaver.

Prometo, na próxima, ser menos Jones.

sexta-feira, agosto 03, 2007

Por quê(s)...


Por que os fins-de-semana são tão efêmeros?
Por que bolo de chocolate sempre acaba?
Por que as jujubas do pacote não são todas vermelhinhas (e por que quando se oferece a alguém,elas sempre estão em cima?)?
Por que os amores não duram pra sempre?
Por que não duramos pra sempre?
Por que doce engorda?
Por que a vida não tem a opção "rewind" dos vídeo-cassetes?
Por que Friends acabou?
Por que 24h são sempre insuficientes pras nossas pendências cotidianas?
Por que, uma vez perdida, a noção pueril de mundo jamais retorna?
Por que a inocência se esvai com o tempo?
Por que os seres humanos cada vez mais aprimoram a capacidade de ferir?
Por que aquela pessoa nunca está no MSN?
Por que você nunca esbarra com ela na fila do pão?
Por que ela só aparece quando você está fantasiada de mocréia?
Por que o pacote de Bono acaba?
Por que os mocinhos viram vilões?
Por que o lado da manteiga sempre cai virado pro chão?
Por que as caixas de lápis de cor sempre vêm com um branco?



(...)

Por que eu não consigo esquecer o seu perfume?
Por que carrego de ti tamanha bagagem semântica?

(...)

Por que?




PS: "...you're the only one who can turn me back on..."

quinta-feira, agosto 02, 2007

Turn me on



Não suporto mais paisagem de trânsito lento.

Será que você é incapaz de frustrar minhas previsões?



(abre aspas)

My hi-fi's waiting for a new tune
The glass is waiting for some fresh ice cubes

(fecha aspas)