Medéia era uma menina estranha.
Tinha um nariz esquisito, e olhos que não lhe caíam bem.
Mal sabia se ajeitar, coitada!
[...]
Vivia sob uma redoma hermética, que a protegia da hostilidade do mundo. Tudo lhe era percebido com estranheza desde tenra idade. Sempre acreditou que esse estranhamento passaria com os anos. Mas seu caleidoscópio sensorial continuou meio esquizofrênico.
Medéia gostava de mergulhar em si mesma de vez em quando. Não que isso fosse incomum, mas chegava por vezes a experimentar verdadeiros estados de fluxo introspectivos.
A aleatoriedade da vida lhe despertava incômodo e fascínio. Mas não despendia muito tempo com arroubos filosófico-ontológicos. Apenas se saber resultado de gametas vitoriosos lhe bastava.
Não tinha paciência, pobre Medéia.
Na verdade, ela nem se preocupava muito com fluxo, sentido e direção. Perambulava, desviava se necessário fosse, dobrava esquinas se a chamassem (ou se não se sentisse inconveniente), driblava as divisórias da calçada, parava ao olhar uma capa de revista na banca, ou ao ouvir erroneamente seu nome lhe sussurrar aos ouvidos.
Mas nunca soube o que queria, pobrezinha!
Medéia costumava falar pouco. No entanto, se entregava à tagarelice quando sentia alguns formigamentos na alma. Atropelava-se nas palavras, e elas a engasgavam a ponto de não haver coesão suficiente e seu discurso beirar o aramaico. Começava frases sem saber realmente onde queria chegar, ou que palavra sentenciara primeiramente.
As conversas ao redor lhe pareciam discos arranhados. Nunca conseguia se encontrar, nem localizar em seu intrínseco motivação para se engajar num papinho interessante. Às vezes, forjava resquícios de interesse, mas sua fugacidade mental não lhe permitia ouvir sequer as horas questionadas em segundos anteriores.
A vida não lhe despertava curiosidade.
Pobre Medéia.
A menina não tinha tempo nem pra se enfurecer com as coisas. Aliás, lhe faltava um pouco de discernimento acerca das concepções socialmente arraigadas dos absurdos.
Inventava ela mesma seus próprios absurdos.
Em sua parca existência, amargou alguns reveses amorosos (e se envolveu com uns tipinhos sobremaneira excêntricos). Ainda assim, podia ser flagrada em meio a devaneios e pieguices esdrúxulas, e chegar à iminência das lágrimas com um desfecho insosso de folhetim novelesco.
Medéia nunca se sentira plenamente. E essa sensação de incompletude lhe era desconcertante.
Pobrezinha.
A menina era uma sucessão de estados de espírito transitórios. Às vezes sentia como não lhe coubesse a alma em tão ínfima estatura. Tudo lhe parecia transcender e inundar o seu marasmo auto-biográfico.
Era de fato um amontoado difuso de vícios, manias e exercícios ritualísticos inúteis. Um emaranhado de ímpetos hedonistas. Um sem-número de corruptelas inadmissíveis ao travesseiro. Um turbilhão psico-afetivo, revestido de culposa ingenuidade, por assim dizer.
Medéia era. Ou, quem sabe, nem quisesse ser.
.
.
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Não sabia.
[...]
Ou talvez não soubesse dizer.